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Os 1500 registos de obras de arte roubadas que a Polícia Judiciária guarda

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Há em Portugal um museu invisível, sem salas, vitrinas ou visitantes. Vive trancado em servidores da Polícia Judiciária, onde se conserva não o que o país possui, mas aquilo que perdeu. Trata-se da Base de Dados de Obras de Arte Roubadas, um arquivo que reúne cerca de 1500 peças — pinturas, esculturas, relicários, livros raros, alfaias de ouro e prata, tapeçarias, porcelanas —, cada uma registada com fotografia, descrição, data e história.

Criada para dar ordem ao caos dos antigos registos e dotar o património nacional de uma memória organizada, esta base de dados funciona como uma arqueologia do desaparecimento. A cada ficha corresponde um fragmento de um país que se dispersou, furtado pela cobiça, pelo descuido ou pelo tempo.

Entre os casos mais célebres está o roubo das Joias da Coroa Portuguesa, subtraídas em 2002, durante uma exposição no Museu de Haia. O diamante de 135 quilates, o castão de bengala de D. José I, o anel e a gargantilha régia desapareceram sem deixar rasto. O Estado neerlandês pagou uma indemnização, mas o gesto não restaurou o símbolo: nenhuma quantia substitui a perda irreparável da memória.

Outros episódios deixaram marcas profundas: o assalto de 1985 ao Museu Nacional de Arte Antiga, que retirou seis pinturas flamengas do século XVI — mais tarde recuperadas pela persistência da investigação policial —, ou os furtos sucessivos em igrejas, palácios e coleções privadas, onde o património português foi sendo silenciosamente delapidado.

Cada desaparecimento é tratado com rigor forense. As obras são catalogadas e partilhadas com a Interpol, permitindo a identificação de peças em leilões internacionais. Por vezes, o acaso recompensa a vigilância: um santo de madeira reaparece em Bruxelas, um quadro de Columbano regressa ao país, uma peça de ourivesaria é restituída ao altar.

Mas a maioria das obras permanece desaparecida, perdida nos circuitos do tráfico internacional de arte, onde o valor histórico se confunde com o preço de mercado. O país já não as vê, mas continua a guardá-las em registo, como quem mantém viva a esperança de um reencontro.

Esse museu invisível da PJ é um espelho silencioso do que Portugal perdeu — um catálogo da ausência que recorda o preço da indiferença. Cada ficha é uma memória em suspenso, uma tentativa de recompor o retrato fragmentado de uma nação que, muitas vezes, só reconhece o seu património quando ele desaparece.

A memória artística de um povo não se mede apenas pelo que exibe, mas também pelo que procura reencontrar. Nesse arquivo digital, feito de silêncio e paciência, o passado espera — e recorda-nos que o esquecimento, quando institucionalizado, é a forma mais lenta de roubo.

Por Paulo Freitas do Amaral
Professor, Historiador e Autor

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